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Diários de uma Aventura

Por Ayrton Aguiar – aluno do CBM 2 de 2007 Para evitar juízo de valores sobre os companheiros de curso, adotei a estratégia de três nomes para cada grupo “étnico”: Guias = Pedro – bom, eles amam pedras, além de estarem tentando construir uma comunidade… Mulheres = Maria – não conheço nome mais bonito para mulheres e infelizmente elas são uma minoria no montanhismo Homens = João – homenagem aos Joões do Mané Garrincha, aqui infernalmente driblados e tortos por subidas, descidas, nós, cavernas e montanhas

Diário de uma Aventura I Saída para Itaguaré 17/08/2007 Guias: Baretta, Daniel, Róbson e Robles “Tudo Azul” A desorganização imperou na nossa primeira saída – pela falta de experiência, não combinamos bem quem levaria as barracas, fogareiros e carros… Se não fosse pela Maria e João que se deram ao trabalho de ligar para todos e sincronizar as ações, teria sido um desastre. Com três desistências – João, João e João – todo o arranjo feito na quarta anterior foi por água abaixo. Havíamos combinado de nos encontrar na praça Panamericana e sairmos juntos em três carros. No final, cada carro foi independente e eu e João fomos nos encontrar com o João em Guarulhos, para irmos em seu carro. Chegamos sem grandes dificuldades à pousada, por volta das 2:00 da manhã, as indicações não eram perfeitas, mas suficientes. Já estavam o João, João e Maria. A Maria, João e João chegariam pela manhã, algumas horas antes da saída. Logo de início percebi que o João roncava como um elefante – fiz uma nota mental para tentar evitar de ficar na mesma barraca que ele… A combinação era estar pronto para sair em frente à pousada às 8:00. Bem, às 7:45 estávamos em frente à pousada para começar o café da manhã… Após breve preleção do Pedro e divisão das cordas pelo Pedro, pegamos os carros e no encaminhamos para o começo da trilha. Pelo estado da estrada comecei a compreender porque o Pedro possuía um caminhão… A Maria, João e João passaram um sufoco razoável ao não se prevenirem com o combustível – ao não saírem com tanque cheio e não saberem exatamente o local do ponto de encontro, quase ficaram sem combustível durante a madrugada. Primeira lição de logística… Estava habituado a longas caminhadas, como 30, 35 km por dia. Acampara alguma vezes e me achava em boa forma física. Achava que não iria ter problemas com trilhas ou mesmo escaladas – afinal, qual a dificuldade de se pendurar numa pedra? As próximas saídas iriam mudar completamente esta perspectiva… Ao contrário da maioria, meu stress era de não levar peso, preferindo esquecer alguma coisa a levar em excesso. Minha mochila certamente era das mais leves e como tal, acabei levando jogo de panelas do João e barraca da Maria. As outras mochilas estavam pesando muito, algumas mais de 22kg – ou eu estava muito certo ou muito errado, iria descobrir em breve. Aparentemente, esta era uma lição prática – sem aula anterior de como preparar a mochila, descobrimos na raça, seja no excesso ou falta de equipamento. No meu caso, faltou roupa e sobrou comida – se tivesse feito frio de verdade, poderia ter tido problemas, pois não levara camisas térmicas, apenas agnorak e blusa de fleece. Foram aproximadamente 4 horas de caminhada – muito, muito puxado. O Pedro parecia ter asas nas pernas, ignorando a declividade do terreno. Estávamos todos com dificuldade para seguir seu ritmo. Pelo menos tivemos o prazer de ouvir o Pedro “sugerindo” pro Pedro um ritmo mais moderado… De qualquer forma, ao longo da caminhada sentia a mochila pesando uma tonelada, haja dificuldade em carregar aquele trambolho. Fizemos duas paradas para descansar e por volta das 14:30 chegamos no platô que seria a base do acampamento. O João estava passando mal – havia dormido muito pouco durante a semana e tinha passado a noite em claro, dirigindo. Sofreu horrores para chegar na base. Aprendeu da pior forma como a ausência de sono pode comprometer toda caminhada. Montamos as barracas, comemos e fomos atacar o cume. As botas que estava usando revelaram-se muito adequadas àquele terreno, principalmente por aderirem bem à pedra. Havia grau de dificuldade razoável em subir nas pedras, mas nada muito complicado. Rapidamente os guias encontraram a trilha/caminho para o cume e montaram a corda de segurança para cruzarmos um trecho muito exposto. Vesti a cadeirinha, nó de fita e aguardei minha vez. Ao travar o mosquetão, o Pedro revisou e lá fui eu cruzar o trecho. Ali aconteceria minha primeira grande lição: ao chegar do outro lado, o Pedro checou o mosquetão e ele não estava travado. Ou seja, se eu tivesse escorregado e caído numa posição que forçasse o mosquetão de fora pra dentro, seria um belo acidente… Dei uma gelada e não entendi bem o que acontecera – basicamente, durante a pequena travessia eu deixara o mosquetão bater umas duas ou três vezes na pedra. De acordo com o Pedro, isto acontece uma vez em um milhão, um mosquetão abrir desta forma. Mas aconteceu, e comigo….Comecei a ficar desconfiado das estatísticas. A vista era linda e valia a pena a caminhada. Muito, muito bonita mesmo. Dali víamos outro pico na frente e duas ou três cidades. A sensação de liberdade era muito boa. Voltamos para o acampamento já anoitecendo, todos muito cansados. Eu não havia trazido lanterna e logo descobri a falta que fazia… O João possuía uma reserva e me emprestou – ajudou muito, teria tropeçado muito mais e não achado nada na barraca durante a noite. Estava longe de dominar a arte de preparar a mochila, precisava tirar tudo para achar o que queria e sem lanterna, seria impossível. Já previnido a respeito do ronco do elefante, dei um jeito de ficar com o João na barraca que a Maria emprestara – se revelaria uma santa decisão… Eu e ele estávamos muito cansados e fomos dormir um pouco – acordei por volta das 19:00, morrendo de fome. Fui cozinhar o miojo e ensopado de carne que havia trazido. Ficamos preocupado com o João – estava em um grau de exaustão tão grande que não queira comer. Foi necessário o Pedro e João insistirem muito para que ele comesse, pois caso contrário, era certo que passaria muito mal no dia seguinte. Acabaram levando comida na barraca para ele depois do jantar. O grupo já havia começado o jantar comunitário – todos dividiam a comida, bebida, guloseimas. Senti-me culpado por não ter trazido nada para dividir, como vinho, panelas ou fogareiro. Usei a panela do João e o fogareiro do Pedro. A conversa foi muito legal, agradável. Revisamos os erros e acertos, com o Pedro batendo muito na nossa falta de pontualidade. A vista era maravilhosa: o céu limpo, estrelado com vista para as três cidades lembravam um pouco aquelas bases lunares, esféricas com luzes e cores espalhadas em um tereno achatado. Aproveitamos aquela visão, saciados e prestes a descansar, as dores da caminhada já haviam ficado para trás. Mas a noite ainda revelaria surpresas – fomos avisados para tomar cuidado com a embalagem da comida, porém quem presta atenção nestes avisos bobos? Um marsupial – leia-se um rato grande – furou a barraca e a mochila do João, comeu sua comida e ainda defecou nos recipientes, contaminando tudo. Sim, às vezes os guias falavam coisas úteis… O João e o João ficaram na mesma barraca, João e João em outra, João sozinho, Maria e Maria, Pedro e Pedro, Pedro sozinho e Pedro no bivaque. Com tampão de ouvido, eu era capaz de topar quase qualquer elefante roncador, principalmente no grau de cansaço que estava. Dormi como um bebê, nem senti o ronco do João. Por volta das 2:00 da manhã o João improvisou um bivaque – era impossível aguentar o ronco do João. Confesso que morri de rir… No dia seguinte ele nos contou sua odisséia, tendo que deixar claro pro João que infelizmente não dava pra aguentar sua sinfonia noturna, que ele deveria comprar uma barraca, pois dificilmente teria um companheiro que topasse dormir no mesmo espaço. Exceto pelas olheiras do João, não houve maiores consequências… Ao amanhecer tivemos todo tempo do mundo para desmontar as barracas, estender os sacos de dormir e deixá-los secar. Grata surpresa – estávamos cercados por nuvens. Era como um colchão de algodão em volta da base. Acima um céu quase limpo e abaixo, nuvens, muitas nuvens. Muito bonito, adorei a sensação de paz e tranquilidade. Recebemos uma lição de meteorologia do Pedro, onde procurou explicar os tipos de formação e como eles implicam em chuvas de curto ou longo prazo. Entendi pouco, estva realmente focado em apreciar a paisagem. A volta foi tranquila, a montanha havia sido muito benevolente – sem chuva, vento e sol escaldante… Se aquilo era montanhismo, estava indo bem, começava a gostar da idéia.

Diario de um Aventura II Saída para Petar – 23/08/2007 Guias: Renato (Kabelo) e Beto “Montanhas negativas: molhadas escuras e frias” Com a experiência da última vez, ao menos conseguimos dividir bem os carros, barracas e fogareiro. Eu, João e João combinamos de nos encontrar no Terminal Tietê. Com pouco atraso, conseguimos sair de Sao Paulo por volta das 21:30 – meu primeiro prejuízo, esqueci o capacete na lanchonete do terminal… O mapa estava relativamente correto, porém algumas das informaçoes desatualizadas, referências que não existiam mais. De qualquer forma, conseguimos chegar sem grandes atropelos, por volta das 2:00. Grata surpresa, o João já havia montado a barraca – ou condomínio, pois era para 5 pessoas. O João, escolado como elefante roncador, comprara uma barraca tipo bivaque e iria dormir só. Uma vez que não tínhamos que carregar conosco tudo que levaríamos, o pessoal se sentiu mais a vontade para levar o que bem quisesse, principalmente comida, o que se mostraria muito acertado. O local do camping era muito bom, plano e com acesso a banheiro, chuveiro e água corrente. O acidente de percurso desta vez aconteceu com a Maria, pois descobriu – ao ser parada por um policial devido a uma lâmpada queimada – que estava com licenciamento do veículo atrasado. Além de tomar uma bela multa, quase teve veículo apreendido. A gente tava aprendendo sobre logística na base do tapa… A saída estava marcada para 7:30, mas às 6:00 o Pedro já estava acordando todo mundo. Nós três realmente estávamos enrolando para sair da barraca, pois de alguma forma estava confortável continuar dormindo… Sua solução foi no mínimo criativa – passou a entrar nas barracas e puxar os sacos de dormir de todo mundo, até que o conteúdo so saco saísse/caísse. Sua santa mãe deve ter sentido alguns arrepios naqueles minutos… O Pedro e Pedro explicaram o funcionamento das carbureteiras e dividiram conosco o equipamento. Salvou minha pátria, pois estava sem capacete. Peguei uma carbureteira de um modelo diferente e ela judiou de minha paciência, nunca funcionava… Iria descobrir depois que aquele modelo realmente dava problemas. Pra variar havia esquecido algo – o isqueiro. Lembrei muito do Pedro toda vez que ele insistiu que levar isqueiro era mandatório. Desta vez havia comprado headlamp, bolsa impermeável e camisa térmica. Fiquei diversas vezes sem luz, e se não estivesse com headlamp teria tido problemas sérios. Ficar sem luz na caverna é suicídio, muito arriscado mesmo. Desta vez não havia pago pra ver. Comemos rápido e saímos em seguida – de carro – para alcançar a trilha para a caverna. No momento da saída o João e o João chegaram de carro – já os estava considerando como desistentes. Porém o João continuou ausente desta saída. Em pouco mais de 10 minutos, estávamos no início da trilha. Foram aproximadamente 3 horas – isto porque não choveu ou fez frio – para alcançarmos a entrada. A trilha era dura, nada fácil. Cheia de subidas e descidas. O ritmo que os guias impunham tornou a coisa um pouco menos difícil que em Itaguaré – e claro, o peso das mochilas também. No caminho o João perdeu uma das lanternas que havia grudado com esparadrapo no capacete. Eu não tinha muitas expectativas quanto ao Petar, sabia apenas que iríamos explorar cavernas e que haveria trechos onde iríamos nos molhar – por isto a necessidade de uma sacola impermeável. Mas a surpresa foi grata, experiência única. Fomos avisados que não valeria a pena levar botas novas ou bem cuidadas, pois a quantidade de lama seria grande. Levei então um tênis velho de corrida – grande erro, escorregava mais que esqui no gelo, morri de saudade de minhas botas. Em termos de segurança, nada como boas botas. Antes a lama que tombos. A entrada da caverna era deslumbrante, grande majestosa, inerte. Não há horizonte, nuvens ou céu limpo – mas há mistério. Entrar ali era como descobrir um pequeno refúgio escondido, a exploração de um tesouro secreto, escondido nos tempos de adolescência. Talvez Tom Sawyer, Moriarty ou Barba Ruiva estivessem estado ali… Após atravessarmos o rio com água pelo pescoço, quase congelando e eu xingar – mentalmente – o Pedro e o Pedro de todos palavrões possíveis, chegamos em um lindo salão, que possuía uma formação que parecia um chuveiro: uma pedra alta, com pequeno fio d’água que escorria verticalmente, propício para banho. Estava ainda de mal humor devido ao banho anterior, não quis me molhar ali, me arrependo até agora. Oportunidade única… A Maria e o João não nos acompanharam, pois um não sabia nadar e o outro estava prestes a passar mal com a sensação claustrofóbica. Naquele momento, a única coisa que me incomodava era entrar na água e ficar molhado. Ainda não sentira medo ou qualquer sensação de impotência. Mas fiz uma marcação mental sobre aquela situação: e se fosse comigo? Dali fomos tentar encontrar uma saída diferente da entrada, desafio que o guias nos propuseram. Procuramos fazer fila indiana e cada um que passava devia esperar o outro alcançá-lo para indicar o caminho ou estratégia de passagem. Comecei a aprender o significado de “quebra-corpo” – havia passagens absolutamente inviáveis na perspectiva do “homem erectus” – ou se contorcia, dobrava, passava primeiro um membro e depois o outro, inclusive deixando para respirar mais tarde… ou não se passava. Ponto. Ah, se houvesse terremoto, abalo sísmico ou movimentação tectônica no momento da passagem, talvez um rim ou pulmão ficasse pelo caminho. Apesar da estatística, a criatividade humana nestas horas é imensa, tudo que pode acontecer de errado passa pela cabeça. E se a pedra rolar? E se a estalactite cair? E se houver um desabamento? Era mais fácil dar dor de barriga e sofrer desidratação, mas quem liga para probabilidades nestas horas? Houve um trecho onde estávamos eu, João e João – nesta sequência e o João e João mais à frente. Em certo momento havia uma passagem bem difícil que o João desistiu e voltou para trás – como o João não esperou a minha chegada, ficamos eu, João e João tentando passar sem sucesso. Lição aprendida – tem que esperar o retardatário para observar como passar pelo trecho. Se a fila indiana se rompe, há boas chances de problemas. O João ainda conseguiu passar por aquela primeira subida, mas não avançou mais – nem eu ou o João conseguimos passar. Esta foi a primeira vez no curso que não conseguia fazer alguma tarefa. Não fiquei muito frustrado, iludí-me dizendo mentalmente que era só uma questão de cansaço e paciência… O salto começava a abaixar, mas ainda precisava mais. Em certo momento nossa fila indiana já virara uns 3 ou 4 subgrupos e ningém conseguia achar a bendita saída, exceto o Pedro e o Pedro. Logo, os guias voltaram, nos reuniram e nos encaminhamos para a entrada. A volta foi bastante simples, mais uma vez tendo que entrar na água e congelar do fio do cabelo ao dedinho do pé. E mais uma vez o Pedro “roubou”, adotando um caminho pelas pedras laterais para não se molhar. Pelo jeito os guias rezavam o mesmo mote de um antigo professor na faculdade, “dificuldade dignifica o caráter…” Saímos por volta das 15:00 da caverna, o cansaço começava a imperar. O Pedro, João, e Maria iam na frente e eu corria como louco para não deixá-los distanciarem-se. Estávamos com barro da sola do pé ao dedo mindinho – molhados, cansados, sujos e com fome. Porém quase três horas de caminhada nos separavam do acampamento. Estava como tanta vontade de chegar que mantive um ritmo bem forte. Foi duro, bem duro, muito mais difícil do que a vinda. Finalmente chegamos, e em pouco mais de 10 min, o resto do grupo estava completo. A Maria nos contou de quão cara havia saído aquela viagem para ela – se descobriu sem ter renovado o Licenciamento do carro durante uma parada policial, já que uma das lâmpadas do farol havia queimado durante a viagem… Só não teve o carro apreendido porque Deus e o guarda não quiseram. Pegou apenas uma multa de R$200 e seu documento apreendido. Fácil… A chegada no acampamento era uma bênção, devido ao grau de exaustão que estávamos. Alguns foram tomar banho, outros banho tcheco e os restantes só queriam deitar um pouco para descansar. Exceto por alguns marmanjos que não tomaram banho devido ao medo de uma aranha no chuveiro, todos tivemos as vontade satisfeitas. Eu fui de banho tcheco, a idéia de outro banho frio não me agradava. O jantar foi muito, muito agradável – o Pedro hava trazido uma lona onde todos sentaram, dividindo o espaço e a comida. Desta vez havia trazido mais comida e me senti mais a vontade ao poder contribuir para o coletivo. O João foi tão atencioso que trouxe milho e fez pipoca para todo mundo. Muito legal. O João trouxe um vinho que me deu saudade do Sang D’Bois da época de cursinho – doce, doce, doce… excelente pra ressaca e dor de cabeça. O Pedro tinha trazido cachaça e a noite prometia ser longa e cheia de histórias. Aprendemos como anos atrás a cizânia e vaidade havia imperado e um grupo de pessoas do núcleo de espeleologia do CAP deixou o clube para montar sua própria entidade. Hoje, mesmo vários anos depois, a atividade de espeleologia ainda não voltou a ter a mesma importância de então, poucos são os membros do clube que gostam de cavernas. Por outro lado, ouvimos histórias muito engraçadas sobre as tribos dos lenços vermelhos – os que usam e os que não usam: entre os que usam, uma facção que prefere amarrar no pescoço, à la James Dean e a outra que o coloca embaixo do boné, à la Beau Geste. Como o Pedro era dos que gostava de usar lenço, era uma ótima oportunidade para colocar o eminente membro do CAP na berlinda… Em seguida, aproveitando a presença do Pedro, discutimos sobre a sexualidade das facções – em tempos politicamente corretos, não se falava pejorativamente de ninguém, mas que aquele lencinho despertava estranheza, ah, como despertava… Infelizmente só havia naquela fogueira membros da última facção, que defendiam ardentemente seu caráter heterossexual. James Dean ficou sem defesa, infelizmente… No final, após de várias doses de cachaça, chegamos à conclusão que todos os membros do CAP deveriam ser obrigados a usar os lenços, colocando uma norma no estatuto. E assim, como bons bêbados, deixamos tudo como já estava e seguimos falando da vida alheia… No dia seguinte, mais uma vez nos atrasamos – como dizia o Pedro, enquanto guias o objetivo deles era nos estragar para tornar o desafio educativo para as próximas saídas mais interessantes. Enquanto limpava as carbureteiras o João e João desmontavam a barraca. Saímos em seguida, pois a entrada da Caverna das Aranhas era bem perto do acampamento. Vimos o início de um caso de amor que iria perdurar até o fim do curso – o Pedro apelidou o João de “Fru-fru” – devido ao seu cuidado excessivo com os detalhes, como trazer sachês de ketchup, uma lata de feijoada para caminhada ou dois tipos de repelente caso um não funcionasse… Esta foi uma caverna mais tranquila, com menos quebra-corpo e banhos gelados. Todo o grupo acompanhou, não ficou ninguém para trás. O momento mais marcante se deu quando, ao acharmos uma sala minúscula, com todos sentados – sequer havia altura para ficar de pé – o Pedro pediu que apagássemos as lanternas e espiriteiras. Reinou um silêncio e escuridao tão grandes que a consciência do estar mudava – aquele ruído podia ser água, respiração do vizinho ou imaginação mesmo. Mas única certeza era de seu próprio ser. Ficar sem luz e perdido numa caverna como aquela era absolutamente atemorizante. Lembrei das histórias de gente perdida ou sem equipamento que aguardara por dias o resgate, numa sucessão incrível de erros. Um tremendo exercício de paciência e humildade reconhecer os riscos de continuar se movimentando e decidir permanecer parado, esperando por uma ajuda que talvez não venha. O Pedro pediu que cada um fizesse um comentário, como resumo da experiência vivida. O que chamou-me mais a atenção foi o da Maria, que no dia anterior não nos acompanhou até o ponto mais profundo por sentir claustrofobia. Porém conseguira vencer o medo e ali estava conosco. Mais uma vez o sentimento de superação me chamava a atenção – lidar com o medo, aprender a conviver com ele e entender seus limites. Voltamos sem grandes problemas, com uma sensação de realização, etapa superada. Estava contente, mas ainda meio tramatizado pelo banho gelado. O Pedro mais uma vez repetiu que teríamos muitas saudades do Petar… Lembraria de cada uma de suas palavras no Baú.

Diário de uma Aventura – III Saída p/ Andradas – 01/09/2007 – Guias: Robles, Vágner, Milton, Róbson, Eric e Ed “Tudo posso no Top-Rope que me fortalece” Andradas deveria representar um divisor de águas, pois se havia uma saída que não poderia deixar de ser realizada era aquela – desde o início o Pedro deixou claro que quem não fizesse Andradas não seguiria no curso. Estava confiante que esta seria uma experiência interessante. Mais uma vez definimos os carros como de antemão – eu, João e João. Desta vez iríamos no meu carro e combinamos de nos encontrar na Av. Paulista, mais fácil pro João que viria de Guarulhos. Saímos de São Paulo às 21:00 e chegamos ao refúgio à Meia-Noite e quarenta, após vários enganos ao longo do caminho. Parte do treinamento de se perder e se achar… Todos os “times” já estavam presentes, exceto pelo João, João e João. Ao chegarem mais tarde, fariam com que, pela primeira vez, todos os alunos estivessem presentes em uma saída, inclusive o João. Uso do tradicional tampão de orelha, estávamos todos dormindo por volta das 1:30 da madrugada. Surpresa: 5:30 somos despertados pelo Pedro com uma corneta… Queria comer seu fígado no palitinho… Havia deixado a mochila preparada para poder levantar-me mais tarde e acabamos saindo quase uma hora antes do combinado. Para um grupo que estava sempre uma hora atrasado, começamos bem a jornada. Belo trabalho educativo, como diria o Pedro. A trilha é íngreme, mas curta, por volta das 8:30 já estávamos na rocha, prontos para começar a escalar. Começam os desafios… Pedro e Pedro guiam duas vias rapidamente, sem grandes dificuldades. O ponto que estamos é relativamente alto, apresentando uma queda de 10 metros – me espanta a naturalidade que andamos de um lado a outro no espaço exíguo sem nenhum medo. Uma queda ali iria machucar muito. Maria e João são os primeiros a escalar, não demonstrando dificuldade. Vã ilusão… A via do Pedro mostrou-se a mais difícil em seu início e as desistências são muitas. Aparentemente as instruções após escalada e chegada na parada são longas – após 2 horas na fila e sem muita paciência, resolvo fazer o exercício do Prussik – como subir e descer numa corda. O Pedro e Pedro haviam montado a corda numa árvore pouco abaixo da rocha. O relato do Pedro é impressionante e ilustra a utilidade da técnica – certa vez escalando em Campos do Jordão, se viu pendurado, sem mais corda, numa altura de cerca de 30 metros. Não havia como descer mais – o único caminho era para cima. E tirando o Batman, ninguém consegue subir numa corda na vertical só com os braços… A situação exigia o uso do Prussik para subir – porém não conseguiu usar a técnica. Deve ter passado um perrengue daqueles. Bom, faço os nós com os cordins e começo a subida. Logo de imediato percebo problemas com os nós – devido à relação de espessura entre cordim e a corda, foi necessário dar uma volta a mais no Prussik. Tudo bem, começo a subir, tensionando a corda e fazendo o vai-e-vem dos nós do mosquetão e de apoio para perna: sobe o corpo, puxa o nó preso no mosquetão, apóia o peso e puxa o nó para apoiar o pé – sucessivamente. Vinte minutos mais tarde estava no topo da árvore. Agora era só fazer o contrário: apoiar o pé, soltar o nó preso no mosquetão e apoiar o corpo – descendo. Bom, numa situação controlada como aquela, foi simples. Numa situação “real”, seria a mesma coisa? A Maria chegou e entrou na fila pra fazer o exercício do Prussik. Logo que desci ajudei-a a começar sua subida e voltei para a rocha, entrando na fila novamente. Haja paciência por parte do Pedro e Pedro – eles ficariam debaixo de um sol escaldante explicando as técnicas de parada durante várias horas… Esperaria ainda cerca de duas horas para começar a escalada. Almoçamos ali na pedra mesmo, consumindo sanduíches, salgadinhos e energéticos. Queria saber como os guias lidavam com a fome e sede debaixo daquele sol e pendurados no auto-seguro. Como dito anteriormente, havia duas vias montadas, uma com o Pedro e outra com o Pedro. Tomei a do Pedro por ter sido a primeira a vagar, mas, com as desistências começando, estava ficando claro que a via do Pedro era mais difícil. Esta foi minha primeira experiência em rocha, nunca escalara até então. A primeira iniciativa é evitar a queda de todas as formas – se existe ou não segurança, não interessa. Você não quer cair e ponto, se desespera e luta para não escorregar e ficar pendurado. Após uma saída meio chata, consegui chegar na parada. Apesar de não ter feito uso da segurança durante a subida – ou seja, não caí – morri umas três vezes na hora de montar a parada… Muitos, muitos erros – mosquetão do lado errado, confundi o Volta-do-Fiel com o UIAA, abri o mosquetão da parada e não o meu, só lembrei de uma maneira de executar a parada… Eu estava começando a entender a seriedade de lidar com a escalada – muitos detalhes que numa situação crítica podem fazer toda a diferença. Uma brincadeira de gente grande, que exigia muita responsabilidade sua e para com os outros. Capacete? E se cair uma pedra enquanto você faz a segurança de alguém? Rapel? E se você tiver um desmaio na descida? E se a corda acabar e estiver sem nó na ponta? Ou se um nó estiver errado e houver necessidade de tração? É um esporte binário – ou está certo ou está errado, não tem estado intermediário. Os nós, o equipamento e seu uso, as cordas, o horário e o planejamento – tudo tinha que estar adequado e correto à situação presente. Para encordar-se, nó de oito; para auto-seguro, nó de fita; início de escalada, checar segurança; subindo ou fazendo segurança – sempre de capacete. Velejar ou percorrer o Caminho de Santiago parecia mais fácil… O Pedro explicou como montar a parada, porque os mosquetões devem sempre ficar voltados para fora, como “meiar” a corda e não perdê-la ao jogá-la para baixo. Como a equalização deveria ser feita, primeiro fazendo a ancoragem provisória, colocando o auto-seguro e depois trabalhando na mesma. Uso de três mosquetões e fita, avisar o companheiro que está em “auto” e esperar ele dizer que a corda está solta. Não necessariamente você estará sozinho naquela parada, outros podem compartilhá-la ao mesmo tempo e procedimentos devem ser seguidos para que a movimentação de um escalador não coloque em risco os outros. Sim, muitos, detalhes, uma tonelada deles. Esqueci quase todos poucos dias depois. Só iria aprender aquilo com muita prática e uso – de preferência ao lado de gente mais experimentada. No final do dia, o João, Maria e João não conseguiram escalar a pedra e assim deixaram para tentar novamente no dia seguinte. Arrisquei subir na outra via e, apesar da dificuldade, consegui subir. A saída era bem difícil mesmo, só consegui subir porque o João me ajudou dando as indicações de onde colocar os pés. Voltamos felizes da vida, pois além da escalada, a noite prometia – seria a primeira vez numa saída que estávemos perto de um centro urbano e poderíamos comer em um restaurante, tomar cerveja e jogar conversa fora sob luz elétrica. Esta seria uma das noites mais memoráveis do curso. Voltamos por volta das 17:30, ainda com luz. Ao chegarmos ao abrigo, um luxo até então impensável – banho quente! O João obviamente fez valer seu apelido de Fru-fru e demorou horas no banho. Compreensível, depois de um dia de escalada, ficar embaixo da água quente era uma delícia. Com apenas dois banheiros, levamos quase três horas para o grupo inteiro estar pronto para irmos à Andradas. Éramos um total de 17 pessoas, lotamos quatro mesas no restaurante. A fome foi um tempero fundamental na comida light que comemos: tutu à mineira, feijão tropeiro, costela de porco e torresmo. Regado a cerveja, muita cerveja… Repus todas as calorias gastas no dia, com um saldo bem positivo. Com cerveja e comida, a conversa seguia animada e alegre, com um causo atrás do outro. Aparentemente Andradas era um repositório de causos do CAP – e nossa turma iria acrescentar mais algumas histórias àquele repertório. Aquele fim de semana era de festa, a praça estava cheia de gente e havia um baile com cantores sertanejos no clube da cidade. Após um curto footing, os hormônios masculinos começaram a falar mais alto e os solteiros começaram a prestar mais atenção na fauna feminina nativa ali presente. Fomos tomar sorvete e observar um pouco mais a paisagem. Rapidamente dois grupos se dividiram – compromissados e solteiros, sendo o primeiro decidido a voltar para o refúgio para dormir e o último disposto a tentar a sorte… Ali nosso companheiro João iria fazer fama. Primeiro fez reconhecimento da área, testando algumas vias e vendo quais melhores pontos de costura. Costurou aqui e ali para que a queda não fosse grande. Após duas voltas na praça, definindo qual seria a via, ele escalou – e lançou um novo grito de guerra associado a uma dancinha: “Let’s fight”, com um pé fixado ao chão, mãos e tronco girando na direção da via, ele executou um giro digno de Tony Manero e foi à luta. Xaveco, xaveco, xaveco até que o perdemos de vista – e então, uma hora depois ele nos avista e pronuncia novo grito de guerra para o folclore Capeano: “Moçada, tô em auto-seguro”. Havia escalado a via, colocado auto-seguro e feito a parada. Feliz? Não, o cara estava radiante… Curiosamente ele queria realizar todas as outras enfiadas, escalar até o topo da montanha. Afirmara que não teria problemas com segurança, só precisava de um pouco mais de tempo. Como estava sozinho naquela escalada, não há testemunhos se realmente chegou ao topo, pois teve que levar o restante do grupo de volta para o refúgio, retornando à Andradas para sua escalada. Mas que só chegou ao refúgio por volta das 5:00 da madrugada, isto é bem verdade… No dia seguinte utilizamos os carros para chegar perto da pedra e após curta caminhada chegamos no ponto de escalada. Foram montadas 4 vias, com graus de dificuldade bem diferentes. Ali finalmente entendi o significado do top-rope – se não fosse ele teria me estatelado umas 3 ou 4 vezes. “Tudo posso no Top-rope que me fortalece”. Fiz minha primeira via com relativa facilidade, havia um apoio de uma árvore para começar a escalada, ajudou bastante. A bota estava atrapalhando, mais ainda não muito. Apanhei pra subir, ralei a mão e cotovelo, mas cheguei ao fim. A Maria fazia minha segurança e ali caí apenas uma vez – lembro bem de suas palavras de encorajamento: “Está seguro, não se preocupe”. Comecei a entender a dinâmica da escalada – cair faz parte, mas tem que cair com segurança. Ficar irritado, bravo – ou zen e tranquilo – e começar de novo. O Pedro costumava dar duas dicas: “É pra cima e não caia”. Desistir não é uma opção. E se racionalizar muito, não sai nada. Parte da prática é para aperfeiçoar ou desenvolver instinto, como soltar uma mão sem saber exatamente onde vai colocá-la e “arriscar” calculadamente. O caldo começou a entornar nas vias mais difíceis – tentei por quase 30 minutos fazer a saída e não consegui. Tentava, tentava e nada. Por mais que o Pedro e o Pedro mostrassem como usar a técnica de apoiar as duas mãos no mesmo ponto e dar o salto para a garra seguinte, não consegui. Comecei a ficar irritado comigo mesmo… O João e a Maria tentaram fazer aquela via e também não conseguiram. Pelo menos estava em boa companhia, mas o recado estava começando a ser passado – não é fácil e nem sempre se consegue. Fui fazer a via mais à esquerda, que exigia pouca técnica mas muita força bruta – era uma fenda onde se utilizava muito o braço e encaixe dos pés. Inventei de usar as botas, não quis emprestar a sapatilha do João novamente. Big mistake… Caí mais umas duas vezes, ralei a mão e cotovelo, pendulei e fiquei balançando de um lado pro outro. Ficava repetindo meu mantra: “Tudo posso no top-rope que me fortalece”. Foi um belo teste para minha teimosia, só cheguei ao fim porque descansei umas duas vezes no top-rope e queria chegar na parada de qualquer jeito. A facilidade de algumas pessoas ali ficou evidente – o João, Maria, João e João faziam aquelas escaladas com muita facilidade, ao passo que o resto de nós apanhava um bocado. Parte porque alguns deles já escalavam antes e parte porque possuíam mais habilidade, força e técnica. Ficou muito óbvio a propensão à escalada no nosso grupo naquele momento: Um terço fazia com facilidade, outro terço com esforço e o terceiro com muita dificuldade. A Maria, o João e o João aproveitaram a oportunidade para treinar a realização de enfiadas, guiando a via, ainda que seguros no top-rope. Nesta altura eu já estava morto de cansado para novas investidas, queria descansar. Enquanto isto o João dormia à sono solto – fizera três das quatro vias e se deu por satisfeito. Queria recuperar algumas das horas de sono que perdera. O dia passou rápido, por volta das 15:00 já estávamos desmontando as vias, guardando o equipamento e recolhendo as cordas. Hora da preleção final: O Pedro nos agradeceu pelo fim de semana divertido que os guias tiveram. Sim, eles estavam felizes por terem passado o sábado e domingo debaixo de sol, explicando a mesma coisa uma dúzia de vezes, apontando os erros e corrigindo-os – eles simplesmente adoravam fazer isto. Eu achava que os alunos é que iriam agradecer, mas os instrutores foram mais rápidos… Estar na pedra, ao ar livre, escalando, guiando, ensinando e dividindo seu conhecimento era extremamente prazeroso para os membros do CAP. Isto era uma novidade para mim, ainda não estava impregnado por este espírito. Fora algumas escoriações físicas e no meu orgulho, saíra ileso daquela saída. Estava começando a acordar para o que era a escalada e como uma montanha pode ser um professor duro e inclemente. Mas isto só se concretizaria no Baú.


10 de dezembro de 2007

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